domingo, 3 de abril de 2011

Fernando Collor de Mello



A inchada burocracia brasileira já era alvo das denúncias de VEJA havia muitos anos quando Fernando Collor de Mello, então governador de Alagoas, começou a combater a praga dos supersalários no funcionalismo de seu estado. Foi por causa dessas medidas de ajuste da máquina governamental adotadas por Collor que o político alagoano apareceu pela primeira vez na capa de VEJA, em 23 de março de 1988. A expressão "caçador de marajás" foi usada como um dos slogans de Collor nas eleições do ano seguinte, as primeiras diretas para presidente depois do regime militar.

(...) Desde que foi eleito, Collor, sem assinar uma única grande obra, conquistou a simpatia dos alagoanos e popularidade no Brasil inteiro. Descobriu primeiro a mina de impacto político que pode ser aberta com uma boa caçada aos marajás do serviço público. Esse é o seu segredo. (...)
'A guerra ao turbante', 23/3/1988

Em disputa com Lula no segundo turno, Collor saiu vencedor. VEJA registrou o caráter acirrado da campanha em dezembro de 1989: "Collor - Vitória num país dividido", dizia a capa sobre sua eleição. Instalado o novo governo, o país foi surpreendido com o mais traumático de todos os planos econômicos - aquele queconfiscou a poupança e a conta-corrente dos brasileiros. O Plano Collor se mostraria um fiasco retumbante naquela que era sua principal missão, acabar com a inflação no Brasil.


(...) Antes de tomar posse, o presidente informou que só tinha uma bala na agulha para disparar contra a inflação e, portanto, não poderia errar. Fez o disparo - só que, ao invés de uma bala de revólver, detonou uma bomba nuclear sobre a economia. . (...)
'O presidente dispara sua bomba', 21/3/1990

Os seguidos fracassos na área econômica, acompanhados de trapalhadas políticas nos dois primeiros anos de mandato, colocaram o governo Collor na berlinda. Mas o pior ainda estava por vir. Em maio de 1992, VEJA publicou uma histórica reportagem de capa com as denúncias de Pedro Collor contra seu próprio irmão, o presidente Fernando. Nos quatro meses seguintes, a revista lançou mais catorze capas sobre o esquema de corrupção organizado pelo tesoureiro de campanha do presidente, Paulo César Farias, o PC.


(...)Desde que Caim teve aquela desavença letal com Abel, briga entre irmãos é um espetáculo lamentável de se acompanhar. Quando um dos irmãos é o presidente de um país com tantas dificuldades políticas como o Brasil,
a briga adquire um caráter de irresponsabilidade temerária.(...)

'Raio x na renda', 20/5/1992

Sua proximidade com Collor escancarou as portas para que ele se metesse em todos os cantos do governo, do Palácio do Planalto ao Banco Central, passando por diversos ministérios. PC nomeou, demitiu e influenciou as decisões do governo. Comandando um esquema de poder paralelo, traficou influência e desviou recursos públicos, como ficaria provadopor uma série de documentos revelados por VEJA naquele tempo.


Sou eu o primeiro interessado no esclarecimento definitivo dos fatos, sou o primeiro interessado na verdade.
Collor, em discurso na TV (8/7/1992)

A população foi às ruas pedir a saída do presidente, enquanto o Congresso e o Judiciário puseram-se à caça de Collor. Em 29 de setembro de 1992, Collor caiu, em uma votação histórica na Câmara. O "caçador de marajás" tornou-se o primeiro presidente da história política brasileira afastado em um processo de impeachment.


O governo perdeu as estribeiras
e partiu para o vale-tudo.

José Sarney, na votação do impeachment (30/9/1992)

A expulsão da "República de Alagoas" de seu paraíso terrestre, os cofres públicos, foi uma vitória da sociedade brasileira. A renúncia do presidente Fernando Collor e a subseqüente suspensão de seus direitos políticos pareciam a catarse perfeita depois de longo período de sofrimento. VEJA foi instrumental na higiene política que culminou com a saída de Collor. Até o impeachment, publicou dezenas de reportagens que expuseram as entranhas de uma capilar organização criminosa dedicada a pilhar as fontes de riqueza estatais e privadas do país. Para VEJA, 1992 foi "O ano glorioso em que nos livramos delle". O Brasil nunca vira antes tamanha desfaçatez de homens públicos. Conseguiu livrar-se de um presidente corrupto, chefe de uma quadrilha que violava a Constituição e levava o país para o abismo.


20 de maio de 1992

Raio x na renda

As exóticas declarações de PC Farias ao
Fisco vêm a público e Pedro Collor intensifica
seus ataques ao irmão do presidente

Nos gabinetes políticos de Brasília, nas salas acarpetadas das sedes de grandes empresas, nas rodas de fofocas de restaurantes da moda e nos telefonemas da família mais em evidência do país, o assunto obrigatório da semana passada foi a briga provinciana entre dois empresários de Alagoas. Que os círculos do poder tenham parado para discutir essa disputa ridícula tem algo de espantoso. Afinal, de um lado da contenda está o proprietário de um jornal, Gazeta de Alagoas, cuja tiragem é de 10.000 exemplares diários. Do outro, um empresário que quer lançar diariamente 4.000 exemplares de um outro jornal, a Tribuna de Alagoas. O primeiro homem de negócios é Pedro Collor, 39 anos, o irmão caçula do presidente da República, e o segundo é Paulo César Cavalcante Farias, o PC, 46 anos, que centralizou a caixa da campanha eleitoral de Collor e teve um poder imenso no primeiro ano do governo. O destaque do nome de ambos ajuda a explicar por que a briga é acompanhada com tanto interesse. Mas ela não é suficiente para deixar esclarecer por que Pedro Collor vem atacando PC com tanta virulência. O fundo da questão é outro: Pedro Collor não está mirando em PC Farias. Seu alvo é o irmão, o presidente.

“Não me importa o que o presidente está achando de meu comportamento. Fernando gosta das pessoas que se curvam a ele, e eu nunca me submeti nem a meu pai. Não vou me submeter a uma pessoa cuja vida conheço muito bem e não respeito”, disse Pedro Collor a Luis Costa Pinto, de VEJA, com quem o irmão do presidente conversou durante cinco horas na semana passada. As atitudes e palavras de Pedro provocaram uma súbita mobilização do clã Collor de Mello para recuperar a ovelha desgarrada. No domingo dia 10, quando Leda Collor, a mãe dos irmãos em litígio, deparou com a reportagem de VEJA a respeito do capítulo internacional do Dossiê Pedro Collor contra PC, chamou o seu caçula ao apartamento onde vive, no Rio de Janeiro. A intenção não era comemorar o Dia das Mães. "Meu filho, eu sei que você tem uma bomba nas mãos. Estou assustadíssima. Não dá para aliviar um pouco?", pediu Leda a Pedro Collor. A resposta foi cheia de ódio: "Só vou parar quando colocar PC na cadeia, quando acabar com a vida dele". Na noite do mesmo domingo, a irmã de Pedro, Leda, casada com o embaixador Marcos Coimbra, secretário de Collor, telefonou para o caçula num hotel em São Conrado e lhe passou uma longa descompostura.

CAIM E ABEL - Na terça-feira, Leopoldo Collor, o irmão mais velho, deu um telefonema apaziguador. "Pedro, o PC vai acabar te processando por falsidade ideológica. Pensa um pouco, sai do circuito", pediu. Pedro Collor não quis contemporizar. "Não saio do circuito porcaria nenhuma", respondeu. "Quero mais é que ele me processe, porque aí estarei na frente de um tribunal para falar o que bem sei e incendiar o circo. Você sabe muito bem que eu posso tocar fogo em tudo, Leopoldo." Na quinta-feira à noite, segundo Pedro Collor, Leopoldo serviu de intermediário do presidente para uma nova tentativa de se acalmar os ânimos. O irmão mais velho telefonou ao caçula e disse que o irmão do meio queria conversar com Pedro Collor no Palácio do Planalto. "Respondi a Leopoldo que só iria falar com Fernando no Palácio depois que PC estivesse atrás das grades", conta Pedro. Desde que Caim teve aquela desavença letal com Abel, briga entre irmãos é um espetáculo lamentável de se acompanhar. Quando um dos irmãos é o presidente de um país com tantas dificuldades políticas e econômicas como o Brasil, a briga adquire um caráter de irresponsabilidade temerária.

O dossiê contra PC, informa Pedro Collor, está materializado numa fita de videocassete, guardada no cofre de um banco em Nova York. Segundo Pedro Collor, se vier a morrer subitamente, os depositários do dossiê em Nova York estão instruídos a remeter a fita para os principais órgãos de imprensa brasileiros. Na fita, o irmão do presidente discorre na frente da câmara sobre os negócios de PC Farias e fala de Fernando Collor. Na primeira parte, o tema são os negócios internacionais de PC. Na segunda, os nacionais. No terço final da fita Pedro Collor se estende a respeito de questões pessoais e familiares. “Para o bem do Brasil, acho bom Pedro Collor fazer um tratamento da sua esquizofrenia, que nos últimos dias vem se agravando", diz o deputado Augusto Farias, irmão de PC. "Não estou louco", rebate Pedro Collor. "Estou sendo muito disciplinado na forma como venho divulgando os fatos." O cronograma de Pedro Collor avançou mais um passo na quinta-feira passada, quando ele expôs a segunda parte de seu dossiê a VEJA - aquela referente à corrupção, tráfico de influência e extorsão de PC Farias em território brasileiro. Ao contrário do capítulo sobre as maracutaias internacionais de PC, Pedro Collor não apresentou um mísero documento para comprovar suas acusações. E que acusações:

• PC embolsou 15 milhões dos 100 milhões de dólares que arrecadou na campanha para a eleição de Collor.

• Como prêmio por ter conseguido que o Instituto Brasileiro de Formulários ganhasse a concorrência para a impressão dos cartões da raspadinha federal, PC estaria recebendo 3,3 bilhões de cruzeiros por mês da empresa desde o final de 1990.

• Por ter resolvido o problema da dívida dos usineiros alagoarios com o Midland Bank, da Inglaterra, PC também estaria ganhando 1 milhão de dólares por mês.

• O deputado Clero Falcão levava a mala, mas quem colocou os dólares que corromperam os deputados da Assembléia Legislativa de Alagoas, para aprovar as contas do governador Fernando Collor em 1989, foi Paulo César Farias.

• Depois da eleição de Collor, quando o presidente eleito estava nas Ilhas Seychelles, PC começou a extorquir empresários, argumentando que ainda havia dívidas de campanha.

• PC teve um papel fundamental na fraude que levou Geraldo Bulhões a vencer as eleições para governador de Alagoas, em 1990, derrotando Renan Calheíros.

• PC Farias presenteou Zélia Cardoso de Mello com um colar de pérolas e vestidos finos para fazer com que ela atendesse seus pleitos no Ministério da Economia.

Numa conversa com Mário Rosa e Mário Sergio Conti, de VEJA, que se estendeu por seis horas na noite de quinta-feira passada, num bonito apartamento carioca com vista para o Pão de Açúcar e o Corcovado, PC Farias rebateu ponto por ponto as novas denúncias de Pedro Collor. A declaração de princípios de PC sobre o affaire do dossiê é o oposto exato da de Pedro Collor. "Não quero tocar fogo no circo”, diz. "Quem tinha vocação de incendiário era Nero, que era louco." No plano pessoal, apesar dos maus bocados que vem passando, PC ainda se mostra otimista. "Minha filha, a Ingrid, chorou, quando viu naquele programa Aqui Agora que a festa de seu aniversário de 12 anos tinha sido regada a champanhe francês. Isso é uma indignidade. Mas no final de tudo isso, vou ter passado um atestado público de honestidade. Vai acabar essa história de que se choveu canivete no Piauí a culpa é do PC.” No plano político, Paulo César Farias está preocupado. “O maior risco com esse tipo de denúncia é institucional. Como é que o país pode ser abalado por um sujeito que é louco? Pedro Collor é um insano, chantagista e irresponsável. É um herdeiro incompetente. Se não fosse irmão do presidente, não era nada."

Na semana passada, os fatos saíram do âmbito alagoano-familiar e adquiriram um peso institucional. Na reunião das 9 horas de segunda-feira, quando o presidente Collor reúne-se com os ministros que formam o núcleo do governo, tocou-se no assunto. Jorge Bornhausen, ministro da Secretaria de Governo, alertou para a possibilidade de convocação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Dossiê Pedro Collor. "Para abrir uma CPI é preciso apenas um terço do Congresso, o que é relativamente fácil de se conseguir”, disse Bornhausen. Na quarta-feira, o deputado José Dirceu, do PT paulista, conseguiu a convocação do secretário da Fazenda Nacional, Luiz Fernando Wellisch, para prestar um depoimento na Câmara nesta quinta-feira. Wellisch, por ordem do ministro Marcílio Marques Moreira, vem investigando há mais de quarenta dias as declarações de renda e o patrimônio de PC Farias. Na sexta-feira, outros três fatos se precipitaram. Primeiro, PC Farias divulgou o seu pedido para que a Receita Federal investigue suas últimas declarações de renda. Depois, o procurador-geral da República em exercício, Moacir Antonio Machado da Silva, enviou um oficio de seis linhas a Pedro Collor e, em anexo, a reportagem da edição passada de VEJA sobre o dossíê anti-PC. O procurador solicita "a apresentação do dossiê, para o devido exame e eventuais providências". Pedro Collor recebeu o ofício com satisfação. "Vou passar o dossiê ao procurador, e já nesta segunda-feira vou marcar a data de entrega e o meu depoimento", diz Pedro. Por fim, o deputado José Dirceu recebeu no seu escritório em São Paulo documentos que lhe foram encaminhados anonimamente.

UM BUGRE E UM LANDAU - José Dirceu analisou as 214 páginas da papelada, separadas em 24 blocos grampeados. Ficou impressionado a ponto, de horas depois, disparar três ofícios via fax. Um para o presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, outro para o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, deputado Francisco Dornelles, e um terceiro para a Procuradoria Geral da República. Nos ofícios ele comunica o achado, anexa fartos exemplos dos documentos e pede providências. Os documentos recebidos pelo deputado são as declarações de renda de PC de 1987 a 1991. Além da pessoa física, há cinco declarações de pessoas jurídicas, de empresas de PC. "As declarações de renda de Paulo César Farias não são compatíveis com seu padrão de vida e com o volume de seus negócios", diz José Dirceu. "Acho que esse assunto deve ser analisado com documentos, e não com base em denúncias sem comprovação."

Pelas declarações de renda encaminhadas por PC ao Fisco fica-se sabendo que desde 1986 ele é o feliz proprietário de um carro Bugre e que em 1988 comprou um Ford Landau, que manteve pelo menos até 1990. Em compensação, o seu IR não registra que tenha casa própria em Maceió, onde mora. Em Maceió, ele é dono de um terço de uma ilha na Lagoa Mundaú e de um terreno em Guaxuma. Em São Paulo, tem um apartamento em um condomínio privado no bairro chique de Cidade Jardim. Entre suas empresas figuram a Tratoral (de tratores), a Florag (de reflorestamento e agropecuária), a EPC (de participações e construções), a Honor (de hotéis), a Brasil Jet (de táxis aéreos) e também a Rio Tejo (incorporadora, hoje fechada). Pelas declarações de PC ao Leão, ele não tem nenhuma empresa ou conta no exterior.

A pedido de VEJA, as declarações de PC Farias foram analisadas em São Paulo por um técnico da empresa de consultoria Arthur Andersen, um ex- fiscal da Receita que hoje é sócio de uma empresa especializada em imposto de renda de empresas e por um funcionário graduado da Secretaria da Fazenda de São Paulo. Ao saber que as declarações eram do famoso Paulo César Cavalcante Farias, os três técnicos tiveram uma reação semelhante: quase caíram da cadeira. "Essa declaração é de alguém que se considera acima da lei, é óbvio que PC Farias leva uma vida clandestina", diz o auditor da Arthur Andersen. "Essas declarações não resistem a uma peritagem séria de uma semana, um Eliot Ness pegaria esse Al Capone”, afirma o ex-fiscal da Receita. “Estamos diante de um empresário de renda modesta, patrimônio declarado médio e vida real inexplicada pelos documentos", avalia o funcionário da Secretaria da Fazenda paulista.

O consultor da Arthur Andersen nota que PC Farias é um homem de posses que, estranhamente, vive com uma renda igual à de uma secretária executiva e provavelmente menor que o salário de um piloto da Brasil Jet, a sua empresa de táxi aéreo. Na declaração de 1991, referente ao ano-base de 1990, teve uma renda mensal equivalente a 2.100 dólares, ou 5,5 milhões de cruzeiros. Mas como teve despesas com o financiamento de seu apartamento em São Paulo, sua renda baixou para pouco mais de 1.000 dólares ao mês. Sua mulher, Elma, ajudou nas despesas com outros 1.200 dólares. Talvez por ganhar pouco, os dois dependentes de PC, os filhos Paulo Augusto e Ingrid, não tiveram gastos com escola, dentista ou médico. PC também não pagou empregadas domésticas, telefone e teve de morar numa casa que não é sua - a enorme mansão onde vive desde março de 1990, por coincidência data da posse de Collor, e permanentemente guardada por seguranças armados de espingardas. Não consta na declaração que os seguranças tenham sido pagos pelo empresário. Tampouco que pague aluguel.

PENÚRIA - Nas declarações dos anos anteriores, constam pequenas despesas médicas e de colégio, mas PC continuava ganhando menos que seus pilotos. Em 1989, teve uma renda mensal média de 1.400 dólares, e Elma contribuiu com apenas 570 dólares. Em 1988, sua renda mensal foi de 2.700 dólares, e a mulher ajudou com menos de 150 dólares. Em 1986, PC rondou a penúria: ganhou 1.000 dólares por mês. A renda, baixa para sustentar os dependentes, é corroída pelas despesas do empresário. Ele paga IPTU de seus três imóveis e o terço IPVA do Bugre e do Landau. O apartamento em São Paulo lhe consome todos os meses 500.000 cruzeiros de condomínio, 10% de sua renda. É curioso que, com esses parcos rendimentos, PC prefira deixar o apartamento desocupado a alugá-lo por 1,3 milhão de cruzeiros, o valor de mercado. "O seu Paulo César não aparece aqui desde a campanha do Collor para presidente", diz um funcionáno do condomínio Privé. Há uma explicação para esse descompasso entre a renda baixa e o padrão de vida de PC. Como uma parte considerável do empresariado brasileiro, Paulo César Farias faz com que suas pessoas jurídicas paguem a conta da pessoa física. O colégio das crianças é pago por uma empresa, a conta nos restaurantes por outra, as viagens ao exterior por uma terceira, outra banca a gasolina, os carros de verdade estão em nome de uma quarta companhia, as empregadas domésticas entram na folha de pagamento em alguma outra, e o mesmo com os seguranças que o protegem.

MÁGICA - O estranho é que as empresas de PC Farias não vão muito bem das pernas, à exceção da Tratoral, conforme a avaliação do ex-fiscal da Receita feita a Joaquim de Carvalho, de VEJA. Cinco empresas funcionam na Rua Durval de Goes Monteiro, em Maceió. Em 1987 e 1988, ele declarou que teve prejuízo de 8.000 dólares com a Rio Tejo. Em 1989, fechou a empresa, com um prejuízo acumulado de 13.500 dólares. Desde julho de 1986, PC é dono da Honor, Hotéis do Nordeste Ltda. Até 1990, ano-base da última declaração obtida por José Dirceu, o hotel não teve receita. "A Honor nunca saiu do papel, ou seja, existe mas não tem vida ativa", explica Paulo Jacinto Oliveira Nascimento, 42 anos, cuja banca de advocacia assessora as empresas de PC. "Paulo César pensou em construir hotéis mas nunca levou o projeto adiante. Outra empresa, a Florag, de reflorestamento e pecuária, não funcionou em 1986. Em 1987, continuou inativa. Em 1988, nada. Em 1989, num espasmo. teve um lucro de 156.000 dólares. A EPC de Participações e Construções, também teve trajetória curiosa. Ela existe desde outubro de 1986, e não teve receita no primeiro ano de atividade. Em 1987, teve um lucro de 3.800 dólares. No ano seguinte, o lucro da EPC foi de 6.500 dólares. Em 1989, seu lucro subiu espantosamente para 680.000 dólares. Segundo Paulo Jacinto, a EPC atua somente na área de consultoria a usineiros. "A EPC cuida da alavancagem de recursos: ninguém tem dinheiro e a empresa se encarrega de conseguir verbas junto a órgãos públicos", explica o advogado. "É o próprio PC que dirige a EPC." Em outras palavras, PC faz lobby e consegue verbas públicas para usineiros.

Depois de ter estado em concordata em 1983 e 1984, a empresa mais sólida de PC, pelas declarações, é a Tratoral, que vende uma média de seis tratores por mês a usineiros e teve um lucro de 346.000 dólares em 1989. PC tem 98% das ações da empresa, 1,5% estão com sua mulher e 0,5% com seu irmão Augusto. Ainda assim, há um dado estranho na declaração da Tratoral. As despesas operacionais não especificadas correspondem a 40% de todas as despesas da empresa. Pode ser nessas despesas não especificadas que coloque alguns de seus gastos como pessoa física, o que é irregular.

O ex-fiscal da Receita e o funcionário da Secretaria da Fazenda captaram um fato absolutamente inexplicável na constituição da Brasil Jet. Pelo contrato social da empresa de táxi aéreo, ele constituiu a empresa em 1988 e ficou com 80% das cotas da empresa por 12.223.368 cruzados - o equivalente a 178.000 dólares. As cotas restantes ficaram com sua mulher, Elma. O que chama a atenção é que essas cotas, na prática, não lhe custaram um centavo. No mesmo ano em que formou a Brasil Jet, ele tomou um empréstimo da empresa pelo mesmo valor de compra. Vale dizer: ele tomou dinheiro emprestado da empresa que estava montando, e da qual era o sócio majoritário. É uma mágica. Nas declarações referentes a 1988 e 1989, a dívida com a Brasil Jet é reconhecida, embora sem correção monetária. Na declaração de 1991, opera-se uma outra mágica: a dívida desaparece e a Brasil Jet se incorpora ao patrimônio de PC Farias. “É óbvio que PC está esquentando a Brasil Jet, dando-lhe uma aparência de negócio normal, apesar da sua origem mais que suspeita”, diz o ex-fiscal da Receita.

Lembrando dos seus tempos de fiscal, esse técnico considera que poderia fazer PC responder a vários processos da Receita. Ele iria nas contas bancárias das empresas, averiguaria o trânsito do dinheiro, analisaria os balanços e, com autorização do superintendente da Receita Federal, faria uma devassa nos livros das companhias de PC Farias. Como esse especialista trabalha hoje ajudando empresas a resolverem seus problemas com o Fisco, ele que PC Farias deveria retificar alguns itens de suas declarações dos últimos anos. Com isso, ele reconheceria erros e pagaria multas. Em contrapartida, evitaria uma devassa que, dada a notoriedade de PC, se transformaria num espetáculo que provocaria o deleite de Pedro Collor.

SUSPEITA - Depois da análise técnica, os três especialistas consultados pela revista levantam duas questões de fundo. Primeiro, aquilo que os americanos chamam de sinais exteriores de riqueza: o estilo de vida de Paulo César Farias não se coaduna com sua renda, com seu patrimônio e com o volume de negócios de suas empresas, tais como expostos nas suas declarações de renda. Só isso bastaria, nos Estados Unidos, para que suas contas fossem submetidas a uma análise minuciosa. "No Brasil, infelizmente, não há essa tradição de se analisar a fundo os casos de sonegação", lamenta o ex-fiscal da Receita. “É apenas mais um sonegador." A segunda questão, que salta aos olhos, é não haver nas declarações nenhum negocio de PC no exterior até o ano-base de 1990. E o Dossiê Pedro Collor está repleto ramificações de Farias na Europa, Estados Unidos e paraísos fiscais.

Na arena internacional, PC Farias encerrou a semana com um ponto a favor e um contra. PC ganhou em Miami, onde havia um registro de uma procuração para o cubano-americano Andrés Giulio Gómez-Mena fechar uma conta da empresa Dupont investiment no Citibank International e transferir o saldo para um banco na Suíça. PC sustentou que a assinatura era falsa e, agora, não há dúvidas de que, do ponto de vista da legislação americana, ocorreu algo de muito suspeito. Ao contrário do que acontece no Brasil, não existem cartórios para o reconhecimento de firma nos Estados Unidos, mas apenas notários autorizados pelo governo a reconhecer a autenticidade de uma assinatura - desde que ela seja feita na presença do assinante.

Na quinta-feira passada, a notária Patrícia Narino, que reconheceu a firma no documento enviado ao Citibank, admitiu a Flavia Sekles, de VEJA, que apenas Gómez-Mena esteve em seu escritório, o que faz da procuração um documento tão autêntico como um dólar fabricado no Paraguai. A notária explica a falha dizendo que conhece bem Gómez-Mena, e que "já reconheci firma em vários documentos dele". PC Farias chegou a fazer um levantamento em sua papelada financeira para saber se, por acaso, não poderia ter se esquecido de que assinara o documento. Descobriu que nem sequer estava nos Estados Unidos na ocasião. E partiu para o contra-ataque. "Conheço o Gómez-Mena”, diz ele. “E sei que ele trabalha como consultor do Pedro Collor." O único documento apresentado pelo irmão do presidente do qual constava uma assinatura de PC não é referendado nem pela notária que o autenticou. Permanece, no entanto, um mistério: a assinatura que está nesse documento, segundo a análise técnica do perito Celso Del Picchia, é mesmo de PC.

BODE - O contragolpe contra PC fora do Brasil ocorreu em Paris. Descobriram-se duas novidades sobre a S.C.I. Financière Albert 1er, empresa de Guy des Longchamps, cidadão francês que os próprios familiares descrevem corno empregado de PC Farias. A sede da S.C.I., descrita em seus estatutos como uma empresa com um modesto capital de 180 dólares, "zero funcionários" e com "zero estabelecimentos", funciona num apartamento de três quartos e um amplo salão, adquirido do empresário brasileiro Antonio José de AImeida Carneiro, presidente do Banco Multiplic e conhecido no mercado financeiro do Rio pelo apelido de "Bode". Depois de ficar três anos com o imóvel, cuja compra fora financiada pelo Lloyds Bank, de Londres, o empresário resolveu colocá-lo à venda, e o mesmo banco se encarregou de fazer o negócio. O Bode jura que não sabia que o comprador seria um brasileiro e "muito menos o PC". Ele garante que nunca viu o tesoureiro de Collor na vida. Dois tubarões da bolsa de valores carioca garantem que o Bode sabia muito bem que estava vendendo o apartamento para PC.

O contrato de fundação da S.C.I. contém outros esclarecimentos. Informa que Guy des Longchamps é proprietário de 1% das cotas da empresa, e que as demais 99% pertencem a Ironildes Teixeira, um brasileiro com residência em Miami, onde dirige uma empresa chamada Miami Leasing, especialista numa das mais conhecidas atividades de PC Farias - aviões. Corretor de jatinhos, Ironildes já fez pelo menos um negócio com PC Farias, envolvendo um avião de origem alemã com prefixo americano. Os papéis da S.C.I. informam que a empresa foi constituída em 18 de junho do ano passado. No passaporte CD 050 144, que pertence a Wanya Guerreiro, conhecida acompanhante de PC Farias em viagens internacionais, e que recentemente participou de uma rápida aventura com o arquiinimigo Pedro Collor, consta o carimbo de uma entrada na França em 19 de junho. "Nós adorávamos Paris", diz ela. Segundo Wanya Guerreiro, PC Farias chegou à capital francesa 24 horas depois da fundação da S.C.I. Que coincidência.

Entre um Pedro Collor que quer colocar PC na cadeia e um PC que quer sair com um atestado de idoneidade moral do episódio está o presidente Collor. O resultado dessa celeuma ainda é incerto, dado o ziguezague aloprado com que Pedro Collor costuma se movimentar. Para o país, no entanto, há pelo menos uma lição a se tirar do episódio: a de que o levantamento de fundos para as campanhas eleitorais transformou-se num terreno minado cujas bombas continuam a explodir anos depois de contados os votos. O país inteiro sabe que PC foi o caixa da campanha de Collor. Pedro diz que 100 milhões de dólares passaram pelas mãos do empresário alagoano, doados por empreiteiros, banqueiros, comerciantes, a fina flor da elite, e que PC embolsou 15 milhões. PC Farias acha que a cifra está em tomo de 65 milhões de dólares, e que ele não roubou nada, apenas os dividiu para pagar faixas, camisetas, programas de horário gratuito na televisão. Mesmo assim, PC se diverte com uma frase do revolucionário russo Leon Trotsky: "Aquele que tem algo a dividir nunca se esquece de si mesmo". A sério, ele argumenta que as contas da campanha de Collor foram aprovadas pela Justiça Eleitoral.

Passada a campanha, entra uma característica que é responsabilidade do presidente Collor: PC teve um poder enorme no primeiro ano de governo. "Indiquei meu irmão Augusto Farias para trabalhar no Ministério da Saúde, o Lafaiete Coutinho para a Caixa Econômica, o Luiz Quattroni para presidente do IRB, a estatal de resseguros", diz PC. "Mas todos eles tinham qualificação técnica para os quadros. À exceção de Lafaiete, que foi promovido para a presidência do Banco do Brasil, todos os indicados por PC caíram. Assim como foram derrubados, em meio a escândalos, todos os ministros com quem PC falava ao telefone ou pessoalmente várias vezes por semana. O governo mudou, mas a sujeira da campanha, produto de uma legislação eleitoral anacrônica, continua a produzir mau cheiro - desta vez na forma de uma quizumba alagoana. Na semana passada o mineiro Marcos Coimbra, cunhado de Fernando e Pedro Collor e contraparente dos Malta de Canapi, lembrava com um amigo uma frase do escritor alagoano Graciliano Ramos. O autor de Vidas Secas olhava para um mapa do Brasil, apontava para o Estado de Alagoas e dizia: “Eis aqui um bom lugar para se fazer um golfo”.


24 de junho de 1992
Entrevista: Renan Calheiros
Eu avisei o presidente

O ex-líder do governo Collor na Câmara conta
as vezes em que falou com o presidente para
denunciar as traficâncias de PC Farias

Depois de ficar oito meses como líder do governo na Câmara, o ex-deputado Renan Calheiros renunciou ao cargo em novembro de 1990 e saiu batendo a porta. Numa época em que a maioria dos brasileiros só ouvira falar de PC Farias no caso Vasp-Petrobrás, Renan deu o alerta: "Se o governo continuar nesse mar de lama, só surfista será capaz de descer a rampa do Planalto". Logo em seguida, o presidente fez sua corrida dominical com uma camiseta na qual se lia a seguinte inscrição: "O tempo é senhor da razão". Renan interpretou essa mensagem como uma resposta às suas críticas.

Já na época, estava espantado com a desenvoltura de PC em tomo e dentro do governo. Tinha uma segunda razão para estar irritado. Candidatara-se ao governo alagoano e viu PC e a mulher de Collor. Rosane, atuarem vigorosamente para eleger o adversário, Geraldo Bulhões, finalmente eleito em meio a denúncias de Renan a respeito de fraude eleitoral.

Renan Calheiros tem um passado político intenso para os seus 36 anos de idade. Filiado ao Partido Comunista do Brasil no início de sua carreira, cumpriu três mandatos legislativos consecutivos. Um como deputado estadual em Alagoas, o Estado onde nasceu, e dois na Câmara, em Brasília. No início da campanha presidencial de 1989, Renan aproximou-se do lanterninha na disputa, o então candidato do PRN, Ferrnando Collor de Mello. Acabou no cargo de líder do governo na Câmara e nada parecia mais natural, tratando-se de um aliado de primeira hora.

Derrotado na eleição para governador de Alagoas, afastado do governo federal, Renan estabeleceu-se novamente em Maceió, onde voltou a advogar. Na semana passada, o ex-deputado rompeu um silêncio que vinha guardando nos últimos tempos ao receber VEJA para denunciar o esquema PC, desta vez com mais ênfase do que nas primeiras investidas. Tocou também num ponto delicado: a situação de Collor em relação ao caso Pc. Renan relata encontros com o presidente durante os quais teria tentado sem sucesso avisáá10 sobre o equívoco e o risco de permitir a atuação de Paulo César Farias. Diz Renan: "O presidente franzia a testa, com cara de quem não gostou, mas não encarava o assunto. O PC era uma verdade que incomodava".

VEJA - Qual é a influência de Paulo César Farias no governo Fernando Collor?

RENAN - Paulo César Farias nomeou, demitiu e influiu nas decisões do governo. Montou um esquema de poder paralelo com seus homens de ouro, prata, bronze e latão. Com esse esquema, PC traficava influência. Junto aos empresários, ostentava poder e acesso ao presidente da República. Esse esquema desviou recursos públicos, deixou crianças com fome, postos de saúde sem remédios, obras inacabadas e enriqueceu muita gente. Era um esquema de poder sedento e guloso. Resultado: atraiu ódio, criou escândalos e atingiu o governo no peito. Destruiu a moralidade defendida na campanha eleitoral. É exatamente essa gula que o destruirá.

VEJA - O senhor poderia dimensionar essa gula?

RENAN - Sei, por exemplo, que ele montou na Secretaria de Assuntos Estratégicos, a SAE, um sistema de controle de currículos. Na SAE, PC obtinha informações sobre a vida dos homens que iriam ser contratados para os postos-chave do governo.

VEJA - Quem lhe contou isso?

RENAN - Funcionários da SAE, cujos nomes prefiro proteger. Uma boa checagem nos procedimentos das nomeações pode comprovar o que digo.

VEJA - O então secretário da SAE, Pedro Paulo Leoni Ramos, sabia disso?

RENAN - Não sei.

VEJA - Por que PC montou esse esquema?

RENAN - Para ganhar dinheiro e poder político.

VEJA - O presidente Fernando Collor sabia das operações de Paulo César Farias no governo?

RENAN - Quem ainda acha que Collor não sabia, se engana. Quem diz que isso não era verdade, mente. Por cinismo ou por ingenuidade. PC é uma extensão do presidente. É uma extensão que tem ramais desde o salão principal até a cozinha da Casa da Dinda. Não é à toa que, durante a campanha, PC alardeava que pagava os cartões de crédito da "madame", como se referia a Rosane Collor. Eu próprio ouvi PC dizer que Rosane estava gastando demais. PC era um provinciano que foi obrigado à cumprir tarefas nacionais. O presidente mandou PC aparar as costeletas, trocar os óculos, resolver seus problemas de estelionato com o Banco Central e 'lhe transferiu amizades. Marcelo Ribeiro (ex-secretário de Transportes do Ministério da infra-estrutura e ex-diretor da empreiteira Tratex), Luis Quattroni (ex-presidente do Instituto de Resseguros do Brasil. o IRB) e Olavinho Monteiro de Carvalho (irmão de Liliheth. a primeira mulher de Collor) são algumas dessas amizades transferi das por Collor a PC. Prova maior de que o presidente sabia do esquema PC em seu governo é que eu mesmo o alertei algumas vezes.

VEJA- Dê um exemplo de alerta que o senhor fez ao presidente.

RENAN - No último encontro que tive com Collor, no dia seguinte à posse do ministro Jarbas Passarinho, dei uma geral no assunto. Entrei em seu gabinete no Palácio do Planalto às 12h30 e saí de lá às 14h I O. Foi o encontro mais tenso que já tivemos. Eu ainda era líder do governo na Câmara dos Deputados e candidato ao governo de Alagoas. O primeiro turno tinha acabado de acontecer e fui mostrar ao presidente documentos que apontavam a fraude que levou Geraldo Bulhões a disputar o segundo turno comigo. Lembro como se fosse hoje. Quando entrei. ele até foi afável. Quando toquei no assunto PC, ele se transfigurou. Eu disse que o esquema montado por PC no governo federal era um câncer que ele tinha a obrigação de extirpar. E citei um exemplo. Relatei as denúncias que recebi sobre a Central de Medicamentos do Ministério da Saúde, a Eme. Disse a Collor que, segundo as denúncias, PC comandava ali uma série de desvios de recursos públicos. "É preciso apurar", disse eu ao presidente.

VEJA - E qual foi a reação do presidente?

RENAN - Ele desconversou. Surpreendentemente, entabulou um discurso sobre os acertos do governo. Collor disse que a inflação dava sinais de que pode" ria voltar a cair, lembrou o superávit da balança comercial e coisas assim. Eu insisti. Voltei a dizer que era preciso apurar, porque grande parte dos recursos utilizados na fraude eleitoral vinha da Ceme. Ele pediu calma. Falou que iria encontrar uma saída honrosa para a sucessão em Alagoas. Mas do PC, nada. Era como se eu tivesse ido até lá tratar de um tema absolutamente sem importância. Pelo menos foi essa a impressão que ele me passou.

VEJA - Como o senhor prova os desvios na Ceme?

RENAN - No começo eram apenas indícios, suspeitas. Em maio de 1991, quando já havia deixado o cargo, o primeiro presidente da Ceme no governo Collor, Antônio Carlos Alves dos Santos, me encontrou casualmente num vôo de Brasília para São Paulo. Visivelmente constrangido, Antônio Carlos me disse que à sua revelia a Ceme foi utilizada pela trupe de PC como carro-chefe dos recursos destinados para a eleição de Bulhões.

VEJA - Em que outra ocasião o senhor chamou a atenção do presidente para o poderio de Paulo César Farias?

RENAN - No início do governo Collor, fui informado que um grande escândalo estava por estourar. O secretário de Transportes, Marcelo Ribeiro, tinha proposto ao governo a dispensa de licitação para um programa de recapeamento de estradas no valor de meio bilhão de dólares. Eu tinha sido informado que ali tinha o dedo do PC. As empreiteiras seriam contratada., sem concorrrência pública. Procurei o presidente e disse que aquilo era escandaloso, iria comprometer o governo e repercutir mal no Congresso. Falei ao presidente que tinha informações de que o PC estava metido naquilo. Collor ouviu, disse que iria verificar e tomar as devidas providências. As providências não foram tomadas até que o escândalo do SOS Rodovias, como ficou conhecido o episódio, foi parar nos jornais.

VEJA - Que providências foram essas?

RENAN - Ribeiro pediu para sair do governo e Collor colocou em seu lugar o então presidente do DNER, José Henrique D' Amorim, outra indicação de PC. Mas eu cumpri meu papel.

VEJA - Da sua parte. qual era o grau de franqueza que usava nessas conversas com o presidente sobre as atividades de Paulo César Farias no governo?

RENAN - De minha parte, com a franqueza de pessoas que se tratavam por Fernando e Renan. A franqueza de quem apoiou e avalizou um projeto que poderia resolver os problemas do país. A franqueza de quem dizia ao presidente coisas que ele precisava saber, sem se preocupar se ele queria ou não ouvir. Esse relacionamento me fazia diferente dos outros, que só falavam "sim, senhor" ou se derramavam em elogios a ele. Por exemplo: ainda naquela conversa após a posse de Passarinho, fui muito claro. Disse ao presidente que a única saída de que ele dispunha para não se meter numa grande fria era PC para fora do país. "Os sinais de corrupção", disse eu, "estão se alastrando é preciso impedir a generalização das irregularidades. Como um vírus, contaminar todo o tecido da tração pública do país." É impossível mais franco do que isso.

VEJA - E como o presidente Collor reagiu?

RENAN - Mais uma vez, desconversou e falou sobre economia. Foi sempre assim. Ele franzia a testa, com cara de não gostou, mas não encarava o assunto. O PC era uma verdade que incomodava.

VEJA - Por que o senhor não denunciou o esquema PC antes de ser candidato ao governo de Alagoas?

RENAN - Como não denunciei, se fui falar com o presidente? No que dependeu de mim, Collor sabia o que PC fazia.

VEJA - O senhor falou com o presidente sobre a participação de Paulo César Farias na campanha eleitoral para o governo de Alagoas?

RENAN - Em junho de 1990, levei ao presidente uma preocupação e uma denúncia. Como líder do governo, fui tratar dos meus assuntos no Congresso e aproveitei para falar das eleições. “Presidente, sua neutralidade em Alagoas está prejudicada pelas ostensivas participações de Roseane e de Paulo César Farias. Roseane está prometendo participar da campanha e usar a máquina da LBA para distribuir cestas e dinheiro para eleger Bulhões. Sobre PC, eu disse ele que estava usando recursos fedederais na campanha.

VEJA - Quantas vezes o senhor falou ao presidente que Paulo César Farias estava usando a máquina do Estado para eleger Bulhões?

RENAN - Perdi a conta. Bernardo Cabral é testemunha de algumas dessas conversas.

VEJA - O então ministro da Justiça, Bernardo Cabral, assistia a essas suas conversas com o presidente?

RENAN - Como coordenador político do governo, Cabral participava de alguns encontros. Ele foi um dos que ficaram ao meu lado contra as fraudes.

VEJA - Quando o senhor falou a Collor sobre Rosane e Paulo César Farias, o que o presidente respondeu?

RENAN - O mais surpreendente é o aspecto revelador do desfecho desse episódio. Quanto à Rosane, Collor disse que eu não deveria me preocupar. Ele a tiraria da campanha e ela daria declarações dizendo que não apoiava ninguém. Quanto a PC, Collor disse que iria conversar no próximo café de segunda-feira que teriam juntos na Dinda.

VEJA - E ele falou com Paulo César Farias?

RENAN - Na segunda-feira do café da manhã, liguei para PC. Ele confirmou que tinha tomado o café com Collor, disse que trataram de vários assuntos, mas nada falaram sobre a questão alagoana.

VEJA - O senhor sabe sobre o que falaram?

RENAN - Não.

VEJA - E por que o senhor disse que o desfecho do episódio era revelador?

RENAN - Ora, se Collor me disse que iria falar com PC, e PC me disse que os dois não tocaram no assunto, eu sei que peguei um dos dois na mentira. Só não sei qual mentiu. Ou se os dois mentiram.

VEJA - Esses encontros entre PC e Collor eram habituais?

RENAN - Pelo que PC falava, eles se encontravam toda segunda-feira na Casa da Dinda.

VEJA - Em entrevista a VEJA, publicada na edição de 25 de março passado, o presidente disse que a última vez em que falou com Paulo César Farias fora há um ano e oito meses. Qual foi a última vez que o senhor teve notícia de um encontro entre os dois?

RENAN - Quando o presidente se refere a esse um ano e oito meses, ele se reporta à última aparição pública dos dois. Isso aconteceu no dia 11 de agosto de 1990, aniversário do presidente, numa festa realizada na casa do empresário Eduardo Cardoso. Nessa festa, PC foi o centro das atenções. Dançou valsa e foi aplaudido pelo presidente, que dizia: "Muito bem, PC, muito bem". Collor fez questão de dar demonstrações de prestígio a PC. Assim como eu, mais de cinqüenta pessoas assistiram à cena. De lá para cá, eu não sei se eles têm se encontrado ou não, mas isso não importa.

VEJA- Por que não importa?

RENAN - Não está em jogo saber se o presidente fala ou encontra PC. Fundamental é saber até onde vai, ou foi, a ligação entre os dois. Os limites do esquema paralelo é que precisam ser destrinchados. Aliás, não convém chamar esse esquema de "paralelo". O mais adequado é chamá-Io de esquema sobreposto. Paralelas são retas que não se encontram. Além disso, não é preciso ser muito esperto para saber que um encontro entre Collor e PC àquela altura poderia ser destruidor.

VEJA - Qual foi o primeiro sinal que o senhor recebeu do poder de Paulo César Farias junto ao presidente?

RENAN - Durante a formação do governo, quando Collor despachava no Bolo de Noiva, fui convidado por PC a participar de uma reunião em sua casa, nas proximidades da Casa da Dinda. PC iria reunir um grupo de políticos alagoanos para discutir a sucessão no Estado. Fiquei incomodado com aquilo. Por que PC, justo ele, iria comandar uma reunião daquelas? Na dúvida, fui ao presidente. Falei do convite. e Collor me orientou a comparecer ao encontro. Ainda me lembro de sua expressão: "É por aí". Fui então à reunião. Lá estavam João Lyra, Cleto Falcão, Moacir Andrade, Geraldo Bulhões. PC sentava-se à cabeceira da mesa e, por mais de uma vez, anunciou que falava em nome do presidente Ferrnando CoIlor. Isso é poder. Dias depois, o então presidente da Caixa Econômica, Lafaiete Coutinho, me disse que de nada adiantariam as pesquisas de opinião que me davam 60% das intenções de voto. Lafaiete contou que um esquema econômico já estava armado para destruir minha candidatura em Alagoas. E sugeriu que procurássemos o PC. Isso é mais poder.

VEJA - Em quais outras áreas do governo Paulo César Farias atuara?

RENAN- Fui percebendo o poder de PC aos poucos. Eu já havia saído do governo quando ele ousou pedir a cabeça do próprio presidente do Banco Central, Ibrahim Eris. Imagine o que isso significa. Peça fundamental para a estabilidade econômica, só é nomeado pelo presidente da República depois que é aprovado por uma comissão do Senado. E o PC queria demití-Io por um capricho pessoal.

VEJA - Que capricho pessoal era esse?

RENAN - PC passou a enxergar no Banco Central um órgão importante para consolidar seu esquema de poder. Aos amigos, PC se queixava que, enquanto era obrigado a recorrer a empresários em dificuldades, a equipe do Banco Central tinha a capacidade de alavancar milhões de dólares num simples ajuste de câmbio. Ibrahim Eris, que sempre me pareceu ser uma pessoa séria, esbravejou, chorou, disse que não aceitava insinuações e, numa conversa com o presidente, colocou seu cargo à disposição. Mais uma vez, o presidente Collor foi obrigado a contornar uma situação difícil criada pela gula de PC.

VEJA - Como se comporta a equipe econômica diante das ações de Paulo César Farias?

RENAN - A ex-ministra Zélia Cardoso de MeIlo, o ex-ministro Eduardo Teixeira e o professor Antônio Kandir sempre me pareceram pessoas honradas. Zélia era competente, mas ingênua e dócil. Depois que deixou o governo, a própria Zélia me contou que, na primeira vez que recebeu pedidos de Pc. foi ao presidente para saber como encaminhá-Ia os. O presidente respondeu: "Vá fazendo". Se tocou esses pedidos para frente, eu não sei.

VEJA - O ex-secretário executivo do Ministério da Saúde Luiz Romero Farias era homem do esquema PC?

RENAN - Claro que sim. Quando pressentiu que a corrupção tragava o Ministério da Saúde, Collor, competentemente, antecipou a saída de Luiz Romero da Secretaria Executiva. E por que Collor agiu assim? É que, se fosse comprovado qualquer envolvimento do nome de Luiz Romero com as irregularidade do ministério, atingiria PC. Atingindo PC, respingaria nele, Collor.

VEJA - Que denúncia concreta o senhor tem contra Luiz Romero Farias?

RENAN - As denúncias concretas eu deixo para a Polícia Federal, que já tem um processo da minha altura - tenho 1,82 metro - sobre as irregularidades praticadas no Ministério da Saúde. Tenho sim um conjunto de coincidências. Apenas para o Lifal, um pequeno laboratório público e falido de Alagoas, que não tem condições de fabricar nem mercuriocromo, Romero mandou pela Ceme um rio de dinheiro. Agora se sabe que o montante enviado é de 16 milhões de dólares. Coincidência número I: no governo estadual de Collor, Romero era diretor-presidente desse laboratório. Coincidência número 2: o dinheiro foi enviado entre junho e dezembro de 1990, justamente no período eleitoral. Coincidência demais, não?

VEJA - Mesmo tendo sido enviado em período eleitoral, o senhor não está condenando uma boa ação, que é mandar dinheiro para um laboratório?

RENAN - Essas transferências de recursos não resistem à mais superficial das auditorias. Se o dinheiro foi usado em obras, qualquer um pode verificar que houve superfaturamento. Se os recursos foram usados na compra de medicamentos, basta verificar as notas fiscais e a sua destinação.

VEJA - Na sua opinião, por que Pedro Collor denunciou o esquema PC?

RENAN - Tudo começou com uma divergência regional. Essa questão cresceu e ganhou contornos nacionais. Mais importante do que saber por que Pedro Collor denunciou é averiguar com cuidado o que ele denunciou. Se ele denunciou porque PC iria abrir um jornal em Alagoas, ou por qualquer outra razão, isso não diminui o peso da denúncia.

VEJA - O senhor está disposto a depor na CPl?

RENAN - Terei o maior prazer em ser convocado. As minhas colocações são públicas e sobre elas tenho responsabilidade. Não sou irmão do presidente. não cresci à sombra dele, não tenho Morcego Negro nem contas no exterior. E não nomeei nem demiti ninguém desse governo. Participei da campanha fui um líder dedicado no Congresso, porque acreditei num projeto de recuperação e reconstrução do país. Rompi quando percebi que caminho escolhido era outro. Explicitei divergências, alertei sobre a corrupção que se alastrava e ainda avisei o presidente sobre os riscos de seu isolamento. Pedi para que ele aprendesse a lição de alguém que até então era da casa. Ele não ouviu. Bati a porta e fui embora. Deixei o governo oito meses depois de instalado. Para a média da classe política nacional, meu gesto foi precipitado. É que a conveniência política faz com que se imagine que é melhor estar com o governo, por pior que ele seja, do que estar fora dele fazendo oposição.

VEJA - O rompimento com o presidente Collor lhe trouxe represálias?

RENAN - Tive de enfrentar as conseqüências e já esperava por elas. Meu processo de inscrição temporária na OAB de Alagoas demorou meses, graças a uma procuradora que ficava criando problemas. Quando fui retirar o dinheiro de minhas contribuições ao Instituto de Aposentadoria da Assembléia Legislativa, já que recusei me aposentar aos 36, tive que recorrer à Justiça.

VEJA - Mais tarde, o presidente convidou-o para voltar ao governo. O senhor identificou ali sinais de que tudo poderia mudar?

RENAN - Não. Seis meses depois do rompimento, o presidente fez seguidos elogios a mim. Mandou intermediários para me convencer e, por fim, no dia 16 de setembro de 1991, ligou para minha casa. Nessa conversa por telefone, ele insistiu em que a minha ausência o fazia sofrer muito. Disse que sem me constranger, queria marcar um encontro para discutir minha volta para o governo. Foi uma conversa de quase quarenta minutos. Agradeci educadamente o convite, mas lembrei que os motivos que fizeram com que eu deixasse o governo persistiam. Para desprazer do presidente, lembrei a estrutura do PC continuava intacta.

VEJA - A CPI está fazendo seu trabalho direito?

RENAN - Se a CPI apurar fundo e desenterrar o estelionato de PC no Banco Central, pode dar cadeia e seqüestro de bens. Se PC for pego apenas por sonegação, irá parecer um jeitinho, um arranjo.

VEJA - O senhor acha que a CPI poderá terminar no impeachment do presidente?

RENAN - Isso não me preocupa e não deve preocupar os patriotas. O mundo político já foi dividido entre governo e oposição. A divisão hoje é outra. Há os que defendem as instituições e buscam a verdade. E há os outros: aqueles que só pensam em seus cargos e privilégios. Se a CPI concluir pelo impeachment do presidente ou Collor resolver renunciar antes disso, a Constituição garante a posse do vice-presidente. Não se trata agora de saber se os fatos chegam ou não ao presidente. Eles já estão lá, já chegaram a ele. Portanto, ele precisa falar claro e desmentir. Se puder. Vai aqui até um desafio. Até hoje, Collor só veio a público dizer que ninguém estava autorizado a falar em seu nome, mas nunca disse textualmente que Paulo César Farias não fazia negócios em seu governo. Eu o aconselho a dizer isso com todas as letras.

VEJA - Fernando Collor foi eleito presidente com 35 milhões de votos. ainda jovem. com um grande futuro político pela frente. Por que ele daria cobertura a um esquema como o de Paulo César Farias?

RENAN - Tenho suspeitas, mas não tenho informações suficientes para falar sobre isso.

VEJA - O senhor afirmaria que o governo Collor acabou?

RENAN - O governo Collor acabou. Mas ele acabou com a saída da Zélia. Acabou novamente na reforma ministerial, e prosseguiu mesmo assim. Um presidente eleito carrega consigo a solidez dos votos que o colocaram lá. O renascimento, agora, é mais difícil. Não basta ao presidente livrar-se de PC. Collor precisará de um conjunto de metas claras para tirar o Brasil da recessão e direcioná-lo rumo ao crescimento econômico e social.

VEJA - Depois de tudo o que o senhor diz ter passado, a política ainda faz parte dos seus planos?

RENAN - A política nunca saiu dos meus planos. Sempre fiz política por idealismo. Militei no movimento estudantil, me elegi deputado estadual em 1978 e fui eleito deputado federal em 1982. Reeleito, participei da Constituinte. Tenho tradição na luta democrática. Portanto, permanecerei na política. Serei candidato em 1994 ao Senado ou à Câmara.

VEJA - Qual é o sentimento que lhe vem à cabeça quando o senhor pensa no presidente Fernando Collor?

RENAN - Não tenho ressentimentos. Não guardo raiva ou rancor de qualquer espécie. Pelo contrário, acho que Deus me protegeu nessa história toda. Quando deixei o governo, o presidente numa de suas corridas dominicais usou urna camiseta com os dizeres "O tempo é senhor da razão". O então porta-voz Cláudio Humberto Rosa e Silva anunciou na ocasião que era uma resposta do Planalto ao ex-líder. Eles queriam dizer com aquilo que o tempo iria mostrar que o governo estava certo e eu, errado. Hoje posso dizer que o presidente estava iluminado naquele domingo. O tempo é realmente o senhor da razão.


8 de julho de 1992
O sindicato do poder

As denúncias contra PC Farias encostam
em Collor, e o Planalto manobra para garantir
sua própria sobrevivência - custe o que custar

O presidente Fernando Collor é um ator nato. Dá a impressão de que, como quem escolhe uma gravata pela manhã, escolhe a personalidade que usará durante o dia. No primeiro pronunciamento na televisão sobre a crise provocada pelas revelações de Pedro Collor, fez o papel de irmão ofendido, cabisbaixo e meditabundo. No segundo discurso televisivo, só faltou gritar palavrões, tamanho o ódio que demonstrou contra o seu ex-líder na Câmara, Renan Calheiros. Na noite de terça-feira passada, o presidente posou de estadista: estava firme e sereno quando negou que seu alter ego, Paulo César Farias, pagasse as despesas da Casa da Dinda, através de depósitos feitos na conta de sua secretária pessoal, Ana Maria Acioli Gomes. "Sou eu o primeiro interessado no esclarecimento definitivo dos fatos, sou o primeiro interessado na verdade", disse Collor na TV. Vamos a eles, aos fatos, em busca da verdade:

• "Chegaram agora ao cúmulo de dizer que as contas de minha casa - casa que pertence a minha família há 25 anos - não são pagas por mim, e sim pelo senhor Paulo César Farias", disse Collor. Não é assim. O cheque de número 000223, no valor de 18,968 milhões de cruzeiros, foi depositado por um funcionário de PC Farias, Flávio Maurício Ramos, na conta de Ana Maria Acioli Gomes.

• “Não mantenho com o senhor Paulo César Farias ligações empresariais ou de qualquer outra natureza que possam beneficiar a mim ou minha família", afirmou o presidente. Não é assim. O Opala usado até poucas semanas atrás pelos seus filhos é de propriedade da EPC, uma das empresas de PC Farias.

• O presidente mostrou uma carta de Ana Acioli na qual ela afirma que, para cobrir as despesas pessoais de Collor, solicitava "recursos, apenas, tão-somente e exclusivamente, ao doutor Cláudio Vieira". Não é assim. A conta da secretária de Collor era abastecida por várias pessoas - e, segundo a CPI apurou até a sexta-feira, Cláudio Vieira não estava entre elas.

A carta levada ao ar por Collor é assinada por Ana Acioli. Não é assim. Segundo peritos, a secretária do presidente assinou um papel em branco. Depois, escreveram a máquina o texto. "Nunca autorizei o senhor Paulo César Farias, nem a quem quer que seja, a utilizar o meu nome em assuntos de governo", afirmou Collor. Não é assim. PC Farias não precisava da autorização do presidente. Sua proximidade com Collor, repetida milhares de vezes pela imprensa há mais de dois anos, bastava a que ele se metesse em todos os cantos do governo. As listas telefônicas de apenas um aparelho, de uma de suas presas, mostram que nos últimos onze meses ele ligou para o Palácio do Planalto, sete ministérios, duas secretarias de Estado, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o Departamento Reservas Internacionais do Banco Central.

Collor pediu 48 horas para responder às denúncias do motorista de Ana Acioli, Francisco Eriberto Freire França. Na televisão, graças a seus dotes histriônicos, venceu muita gente. Dois dias depois, o pronunciamento e provas presidenciais tinham adquirido a sua real dimensão: a de uma manipulação, uma fabricação.

Na noite de sexta-feira passada, o deputado Benito Gama, presidente da CPI que investiga PC Farias, viajou de São Paulo para Brasília em companhia do também pefelista José Múcio, do senador gaúcho José Paulo Bisol, do PSB, e do deputado tucano Jackson Pereira. Eles tinham passado o dia percorrendo bancos paulistas em busca dos cheques que abasteciam a conta de Ana Acioli. Na mala de mão de Bisol, recoberta de uma imitação de couro de jacaré, estavam os documentos que conseguiram recolher. Chegaram a Brasília e depositaram os papéis num cofre do Senado. Só à 1 da madrugada de sábado foram para suas casas. Estavam cansados e preocupados.

"No estágio a que chegou a apuração dos membros da CPI, a renúncia do presidente é a saída menos traumática para o país", dizia o cearense Jackson Pereira. Essa convicção vem se espalhando rapidamente pelos meios políticos. Collor, no entanto, passou a semana dizendo que não renunciará de forma alguma, e está disposto a enfrentar um processo de impeachment. "A renúncia é um ato de pudor, e isso parece que esse homem que está na Presidência não tem", diz o governador Ciro Gomes, do Ceará.

Entre os governistas, a confiança no presidente está se erodindo. Célio Borja, o ministro da Justiça, ameaçou deixar o cargo por duas vezes na semana passada. Na quarta-feira, Collor o chamou e fez um apelo para que permanecesse no ministério. Célio Borja ficou, mas seus amigos garantem que é por pouco tempo. Um outro ministro, do PFL, disse a VEJA que sua estratégia é agir como o campeão da defesa de Collor para, quando não houver mais nada que sustente o presidente, aconselhá-Io a renunciar. Com isso, o ministro pefelista quer credenciar-se para negociar a transição com o vice-presidente Itamar Franco.

O desenrolar da crise promete ser tumultuado, com a possibilidade de golpes baixos. O presidente do Banco Central, Francisco Gros, por exemplo, queixou-se na semana passada a três empresários fluminenses das pressões que vem recebendo. Pressões para levantar a ficha cadastral dos "inimigos" do governo. Gros resistiu às pressões. Entre os "inimigos" detectados pelo Planalto está o vice-presidente Itamar Franco, para quem se prepara a arapuca de divulgar que passou cinco anos sem fazer declarações de imposto de renda.

À Ia Jânio Quadros, Collor divulgou quatro bilhetes na semana passada. Em todos, faz referência ao "sindicato do golpe" - as forças ocultas e terríveis que estariam querendo derrubá-lo. O sindicato do golpe não existe. Existe, sim, o sindicato do poder: aquele presidido por Collor para manter-se na Presidência, custe o que custar.


19 de agosto de 1992
Alegria, alegria

Enquanto os governistas trocam favores, com
humor e objetividade a rebeldia adolescente
toma as ruas pedindo a saída do presidente



Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, uma garotada alegre ocupou as ruas das duas maiores cidades brasilei­ras; na semana passada. Alto astral, altas transas, lindas canções deram o tom às passeatas que atingiram em cheio o coração do Rio de Janeiro e de São Paulo. Foram momentos poéticos, nos quais; se confundiram ficção e realidade, passado e presente, a minissérie Anos Rebeldes e a CPI de PC. Alegria, alegria: a rebeldia juvenil está de volta, juntando mauricinhos; e militantes, skatistas e esquentados. Em Brasília a disputa política encalacrou num intrincado jogo de interes­ses, com senhores engravatados trocando favores sórdidos, ressuscitando a velharia do é-dando-que-se-recebe, e engavetando os valores fundamentais da justiça, da ética e da moralidade. Enquanto isso, no Rio e em São Paulo, uma garotada bonita e bem ­humorada, habituada a freqüentar shopping centers; e curtir a praia, entendeu muito bem o que está se passando nas altas esferas do poder. Em São Paulo, na terça­feira, eles gritavam: "Rosane, que coisa feia, vai com Collor pra cadeia". No Rio, os colegiais berravam: "PC, PC, vai pra cadeia e leva o Collor com você".

ESCOLA DE SAMBA - Depois de tanta desconversa, de uma algaravia de cheques de fantasmas, de complexas redes de corrup­ção formando um labirinto infindável, nada mais salutar que, na rua, de lábios adolescentes, brotem palavras claras. Os meninos e meninas não estavam muito interessados em saber se o impeachment deve ser votado por maioria absoluta ou dois terços. Ou em tentar entender se os governadores Leonel Brizola e Antônio Carlos Maga­lhães são inimigos ou aliados quando apóiam o presidente Collor. Ou em analisar a postura do vice-presidente Itamar Franco quanto à privatização das estatais. Foi Te­reza Alvarez, com a sabedoria que só as meninas de 16 anos são capazes, quem sugeriu aos colegas que na faixa dos alunos do Colégio São Vicente de Paulo estivesse escrito "Bonita camisa, Fernandinho" e, ao lado, se desenhasse uma camisa de presi­diário. Por uma dessas ironias da História, o São Vicente é um dos colégios freqüenta­dos pelos filhos da elite carioca liberal. Nele estudou Femando Collor de Mello.

As palavras da garotada são duras, têm uma seriedade radical, mas as passeatas foram mais festas gigantescas que desfiles de sisudez marcial. Cada povo tem uma maneira de fazer História. Na Ro­mênia, o comunismo foi derrubado a ferro e fogo, com centenas de mortes e a execu­ção sumária do ditador Nicolae Ceausescu e sua mulher. Na Checoslováquia, o stali­nismo ruiu silenciosamente devido à "revolução de veludo", o movimento que, a partir de reuniões de artistas e intelectuais, acabou por corroer as bases do poder. No Brasil, o brio cívico tende a extravasar na forma de um humor cortante, do escracho aberto. As manifestações tem um quê de Carnaval, de desfile de escola de samba.

NORMALISTAS - Tanto é assim que, na passeata organizada pelos secundaristas em São Paulo, a garotada partiu da frente do Museu de Arte de São Paulo, na Avenida Paulista, acompanhada de um caminhão de som que tocava Alegria, Alegria, a bela canção de Caetano Veloso que voltou à moda com a minissérie Anos Rebeldes. Eram mais de 10 000 estudantes, a maioria deles de colégios da rede priva­da, convocados pela União Brasileira de Estudantes Secundaristas através de 50 000 panfletos e 20 000 cartazes em que se lia "Anos Rebeldes, próximo capítulo: Fora Collor, Impeachment Já". Dos tradicionais centros do movimento universitá­rio, participaram apenas oito ônibus alugados, quatro da USP e outros tantos da PUC. Em sua caminhada rumo ao centro da cidade, os alunos provocaram um engarrafamento colossal em São Paulo. Mas dos prédios caía papel picado. A passeata contra Collor e seus quarenta fantasmas terminou no Largo São Francisco, em frente à vetusta Faculdade de Direito - palco de combates estudantis que começaram com as manifestações pela abolição da escravatura, passaram pelas que se insurgiram contra a ditadura do Estado Novo, foram derrota­dos em 1968, ressurgiram no movimento pela anistia e viveram dias de glória na campanha pelas diretas já.

Tanto no Rio como em São Paulo as marchas da juventude refletiram os Anos Rebeldes. "A gente era muito desinformada, só sabia que tinha havido uma ditadu­ra", explica Elaine Barreto Santos, 15 anos, aluna do Instituto de Educação, que, numa outra ironia, serviu de sede para os açucarados Anos Dourados, do mesmo Gilberto Braga. O Instituto de Educação tem o principal curso de magistério do Rio, e é conhecido como uma escola de normalistas bastante conservadora. Mesmo assim, as normalistas organizaram sua par­ticipação na passeata com o humor típico dos da geração novos anos rebeldes. Fo­ram vestidas com o tradicional uniforme de gala: camisa de punho, saía plissada e gravatinha. "As coisas mudaram na escola, e nossa turma é muito politizada", esclare­ce Jaira Lima Ruas, 16 anos. "Se eu tivesse que lutar para defender o Brasil como o pessoal de Anos Rebeldes, faria isso sem pensar duas vezes."

No apartamento de cobertura de Malu Mader, em lpanema, o elenco de Anos Rebeldes reuniu-se depois da passeata para assistir ao último capítulo da minissérie. Estavam todos emocionados com a con­fluência de arte, história e vida que se verificava naquele dia. "Há uma coinci­dência de os nossos vilões estarem triste­mente em evidência, e de os nossos heróis terem no momento uma missão a cum­prir", dizia o noveleiro Gilberto Braga. Findo o capítulo, o ator Stepan Nercessian, que interpretou o porteiro Caramura e participou da rebeldia de 1968, falava em tom de discurso. "É bom saber que estou influenciando a juventude, ao mesmo tem­po que sou influenciado por esta mesma juventude", dizia. "Eu estava apático, ne­nhuma manifestação de políticos conse­guia mexer comigo, só me empolguei quando vi a estudantada na rua."

'EMPURRA QUE ELE CAI' - Apesar de todo o influxo da minissérie, é ilusão pensar que a vida imita a arte. Nas mani­festações, os garotos demonstraram uma percepção aguda do que está se passando. Eles resolveram num estalo o problema de fundo que o presidente do PT, Luís Inácio Lula da Silva, e o do PMDB, Orestes Quércia, discutiram na semana passada. Quércia disse a Lula que um dos maiores receios do PMDB em participar das mani­festações pela saída de Collor era serem vaiados pelos militantes do PT. Em plena época de campanha eleitoral, quando cada partido disputa seus votos acirradamente, a hostilidade é praticamente inevitável. A participação dos secundaristas foi decidida pelos grêmios dos colégios, que resolve­ram aderir à manifestação organizada por dezoito entidades e partidos políticos. No pátio do Colégio São Vicente os alunos do Santo Inácio, Zaccaria, Senador Corrêa e Santa Úrsula, escolas de classe média da zona sul carioca, se encontraram. Decidi­ram que deveriam ter uma identificação, e optam por amarrar tiras pretas no braço, feitas de sacos plásticos de lixo. Ficou estabelecido também que os militantes de algum partido político deveriam se abster de levar bandeiras. A onda de garotos percorreu uma parte do caminho a pé. Eles tornaram o metrô ordeiramente e foram os primeiros a chegar na Candelária. Ficaram ali, cantando seus slogans engraçados, até que chegaram os integrantes da OAB, ABI, UNE, CUT, PT, PSDB e PMDB. Mais adiante apareceu ele - o povo -saindo dos escritórios. dos bancos, das lojas e dos ônibus. Quando a passeata terminou, na Cinelândia, começaram os discursos. Pouco depois, os secundaristas começaram a se dispersar, ou então forma­vam rodas para reformular o grito de guerra da torcida brasileira em Barcelona: "ai, ai, ai, empurra ele que ele cai".

'O MONSTRO' - Comparadas com as multidões portentosas da campanha pelas diretas já, as passeatas estudantis da sema­na passada foram miúdas. Quando se recor­da que, graças aos governistas fisiológicos de então, a emenda das diretas foi derrotada no Congresso, pode parecer que OS governistas fisiológicos de hoje têm razão quando afirmam que Collor só sairá do Planalto no final do mandato. E apenas aparência, por um motivo histórico e outro do presente. Primeiro porque, ao derrotar as diretas no plenário do Congresso, o objetivo dos governistas era garantir a continuidade do regime, através da vitória do então candidato à Presidência Paulo Maluf, e, ao contrário da articulação do Planalto, quem ganhou na eleição indireta foi a chapa Tancredo Neves-José Sarney. Foi graças às manifestações pelas diretas que o regime acabou. Em segundo lugar, as manifestações dos jovens mostraram ape­nas o nariz daquilo que o presidente Jusce­lino Kubítschek chamava de "o monstro".

O monstro, explicava Juscelino, é difícil de combater porque está em todos os luga­res. 0 monstro está nas salas de aula, nas filas de supermercado, nos estádios de fute­bol, nas fábricas, nos escritórios. 0 monstro é a opinião pública. Em tempos de calma­ria, o monstro se manifesta através dos parlamentares, da imprensa, da televisão. Em dias de tumulto, a opinião pública se manifesta de todas as maneiras: nas camise­tas, nas vitrines, na praia, nos outdoors, nos broches, nos monumentos públicos e até nas cores. Os signos do monstro apare­ceram nas passeatas e fora delas. E como acontece no Brasil, na forma de humor. Em Maceió, houve um desfile na praia com bonecos representando Collor e PC Farias. Em Brasília, o artista Chico Chaves colocou olhos de papelão na estátua da Justiça que fica em frente ao Supremo Tribunal Federal, para que ela pudesse . enxergar o que se passa, e a polícia teve de pedir a um menino que restabelecesse a cegueira. No Rio, surgiu na Cinelândia um enorme cheque do Banco Rural de PC para fez por menos: "Lindolfo Collor teria vergonha de seu neto", diz. Por fim, no posicionamento mais significativo, dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, visitou o presidente do Senado, Mauro Benevides, e divulgou um documento duro. "Um sistema demo­crático essencialmente ético não é com­patível com privilégios e corporativismos' vantagens fora da lei, clientelismo, fisio­logismo e manipulação da informação", afirma a nota da CNBB.

O aparecimento do nariz do monstro tem um custo para o Planalto e sua tropa de choque. Tanto é assim que o governador Joaquim Francisco, do PFL, rompeu estrepitosamente com o governo na sex­ta-feira e passou a defender o impeachment. Frente ao monstro, os governistas perderam seus argumentos. Eles simples­mente defendem que não se investigue o envolvimento de Collor na corrupção, o que é um pré-julgamento, no sentido de o presidente ser inocente por antecipação e estar acima da lei. Resta a Collor o Próprio Collor, seus ímpetos e sua audá­cia. Num lance arriscado, ele conclamou os brasileiros a saírem às ruas em sua defesa, usando o verde-amarelo da bandeira. No mesmo dia, o monstro começou a divulgar que os que são contra a corrup­ção e o presidente devem se vestir de preto. A crise está nas ruas. Ao vivo e em cores rebeldes.


30 de setembro de 1992
Collor tenta controlar
a debandada

Os amigos abandonam o navio e o
governo organiza a fuga do plenário
na votação do impeachment

O governo entrou em colapso, na quarta-feira passada, quando o Supremo Tribunal Federal deu um basta às chicanas jurídicas dos advogados do Planalto e definiu que o impeachhment será decidido pelo voto aberto da Câmara, em sessão marcada para esta semana. O secretário de Comunicações, Nelson Marchezan, pediu o boné, os governadores João Alves, do Sergipe, e Pedro Pedrossian, do Mato Grosso do Sul, anunciaram seu apoio ao impeachment. Num total de 27 governadores, já são vinte os favoráveis à saída de Fernando Collor. O PRN virou poeira. Temerosos de ser arrastados no lixo político de Collor, integrantes do círculo de aliados do Planalto voltaram a conversar sobre a sua renúncia. Conforme um assessor direto do presidente. já existe um primeiro acordo a respeito. Collor fica no palácio até a votação na Câmara. Caso o impeachment seja aprovado, hipótese prevista pela imensa maioria dos levantamentos disponíveis na semana passada, vai embora no dia seguinte.

Existem outras previsões. Para o deputado paulista Gastone Righi, um dos mais ilustres integrantes da tropa de choque, pode até ocorrer uma tragédia. "No dia em que o Collor cair na real, ele não vai renunciar", disse Ga<;tone durante um almoço na semana passada. "Vai se suicidar." Collor passou três meses fugindo da CPI de PC Farias. Depois tentou escapar das acusações entupindo o Supremo com artifícios jurídicos. Na semana passada, organizava a fuga na Câmara dos Deputados. Convencido de que o plenário lhe reserva uma derrota consumada, o governo quer livrar-se de uma votação que pode expulsá-lo do Planalto e atirá-lo na usina de compostagem da História. Recém-promovido a secretário político, o ministro Ricardo Fiúza passa o tempo ao telefone, a recrutar deputados fujões, sem coragem para apoiar o governo diante do eleitor que irá acompanhar a votação pela TV, mas com disposição para cair na clandestinidade, sumindo de Brasília por uma semana e obrigando o adiamento da votação para depois, das eleições municipais. Só na quinta-feira o ministro disparou cinqüenta telefonemas com esse pedido.

Fiúza teve dificuldades até para convencer os amigos. O ex-governador de Roraima Romero Jucá entregou sua carta de demissão da Secretaria Nacional de Habilitação, emprego que Fiúza lhe dera há dois meses. Integrante da Executiva Nacional do PDS, Jucá preferiu sair do governo para não atrapalhar a campanha de sua mulher, a deputada Teresa Jucá, candidata a prefeita de Boa Vista, que já anunciou seu voto pelo impeachment. "Queria deixar o governo e minha esposa à vontade", disse Jucá. Inseguro até sobre o comportamento da bancada de Pernambuco, seu Estado, nesta semana Fiúza reassume sua cadeira de deputado. É um voto a mais a favor de Collor, provavelmente na forma de ausência do plenário.

MISÉRIA POLÍTICA - Num ambiente de agonia desesperadora, o próprio presidente entregou-se à operação-fuga Na mesa de gabinete Collor mantém um quadro com os nomes dos 503 deputados que irão decifrar seu destino. Ali estão relacionados os parlamentares que apóiam o governo, os indecisos e os adversários. Em destaque, desde a semana passada, estão aqueles que já concordaram em se esconder. "O presidente conversou com uma centena deles", assegura um deputado que teve acesso à lista. Quando a conversa é por telefone, Collor costuma ser mais contido, encerrando o apelo com um aceno vago de benefícios destinados a seu interlocutor. "Os 170 que estiverem comigo serão governo", diz ele, sugerindo que terá condições de barrar o impeachment com dois votos acima do limite de 168 deputados necessários à sua sobrevivência.

O presidente é mais franco em encontros pessoais. Na semana passada, tentando impedir a derrocada da bancada de seu próprio partido, o PRN, Collor teve com o deputado paulista Taadashi Kuriki um diálogo ilustrativo sobre seu estado de miséria política. Sem apresentar as vantagens que tinha para oferecer em troca do apoio, o presidente passou a explicar as desvantagens que o deputado teria se votasse pelo impeachment, permitindo a ascensão de Itamar. "Se como nosso aliado já está difícil para o senhor passar suas reivindicações, imagine passando para o outro lado, onde o poder já está distribuído", disse. Kuriki ficou de pensar. "É um assunto muito grave", explica o deputado. "Só vamos analisar isso na segunda-feira."

Quando não se dedica à mendicância no plenário, Collor faz o possível para dar a imprensão de que está em condições de fazer planos. Na quinta-feira, por exemplo, o presidente deu três telefonemas para o ministro da Agricultura, Antônio Cabrera. No primeiro telefonema, pela manhã, o presidente queria saber a quantas anda uma portaria que transfere a merenda escolar do Ministério da Educação para o da Agricultura. Nos outros dois, à tarde, Collor estava interessado em saber quando seriam anunciados os leilões para a venda de 15 milhões de toneladas de grãos que o governo mantém em estoque e que serão colocadas à venda nesta segunda-feira. Cabrera disse que estava tudo certo com a merenda e que os leilões estavam a caminho. Collor não falou do impeachment, nem Cabrera perguntou. Mas o ministro tem dificuldade de fugir do assunto quando viaja pelo interior do país e conversa com agricultores. "Em todo lugar me fazem a mesma pergunta: 'Estamos plantando com o senhor. Mas vamos colher com quem?'"

BARATAS - Como os demais ministros, Cabrera fica em seu posto até o dia da votação do impeachment, quando todos entregarão uma carta ao presidente, colocando seu cargo à disposição. Até a sexta passada, nenhum planejava se demitir de verdade - e uma boa parte alimentava a esperança de permanecer no cargo até na hipótese de Collor ser afastado e Itamar assumir. A única exceção é Célio Borja, da Justiça, que anuncia sua saída, sem volta, para a véspera da votação. Nelson Marchezan, das Comunicações, preferiu não esperar tanto. Na segunda-feira, protocolou sua carta de demissão no Planalto. Meia hora depois, recebeu um telefonema de Fiúza. “ Nelson, sua decisão é irretratável?", quis saber o ministro, ouvindo um sim como resposta. "Então, faz um favor. Espera o julgamento do Supremo. Se você sai agora vai dar idéia de debandada." Marchezan atendeu ao apelo e deixou o governo três dias depois. Mas a idéia da debandada pegou para valer.

Com o governo ziguezagueando como barata tonta, há os que abandonam o navio pressas. Até Cleto Falcão, integrante dos laqueados da China que planejaram a campanha presidencial de Collor num jantar em Pequim, em desgraça depois de confessar a VEJA que pagava as despesas domésticas com o dinheiro de empresários interessados em agradar a "um amigo do presidente", agora assume ares indignados e ameaça votar pelo impeachment. "Meu voto será dado em plenário", disse Cleto ao jornal O Globo. "Nunca tive relações com PC Farias e nunca voei no Morcego Negro." Filho do delegado Romeu Tuma, hierarca da Polícia Federal que já foi cercado de muitas mesuras do Planalto, na quinta-feira o deputado Robson Tuma, do PL de São Paulo, deu seu apoio ao impeachment durante votação na sessão da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Em Sergipe, o senador Albano Franco, presidente da Confederação Nacional da Indústria e collorido de primeira hora, anuncia sua saída do PRN, articula a coleta de votos pelo impeachment e, lépido e fagueiro, já palpita na formação do governo Itamar.

ILUSÃO BILíNGUE –Voto é voto, roubalheira é roubalheira, lei é lei. Mas existe uma diferença entre aqueles atilados senhores que pretendiam o impeachment de Collor antes mesmo de sua posse, como o deputado do PT Hélio Bicudo, aqueles que se convenceram da culpa do presidente diante das evidências apuradas pela CPI, caso da maioria da Câmara, e a fama que debandou na semana passada. São aqueles parlamentares que só se convenceram que em preciso investigar o presidente depois que o Supremo definiu que seriam obrigados a apoiar o Planalto pelo voto aberto, em sessão transmitida ao vivo pela TV. Haja cautela. Depois da Dinda, de PC Farias, de Canapi e tudo o mais, a última novidade do aparelho collorido é a sucursal do PRN de Arujá, no interior de São Paulo, especializada em usar de isenções fiscais para contrabandear carros BMW pela metade do preço. Em diversos círculos, o partido de Collor já é chamado de partido BMW.

O governo desmorona, e até Cleto Falcão ameaça debandar, mas nunca faltarão vozes e personalidades de biografia supostamente ilustre para confortar o presidente. Na semana passada, o ministro da Economia, Marcílio Marques Moreira, chegou a presentear Collor com uma ilusão bilíngüe. Disse que, ao cumprimentá-lo rapidamente durante uma cerimônia na Casa Branca, o presidente americano George Bush "me pediu para transmitir ao presidente Collor seu gesto de simpatia". Um repórter pediu a Marcílio que esclarecesse se a "simpatia" se destinava ao presidente, devido à doença de sua mãe, ou à situação no Brasil. "Acho que é uma simpatia pessoal pelo presidente Collor", respondeu o ministro. Como se acreditasse que é o único brasileiro que sabe inglês. Marcílio não esclareceu a diferença entre simpatia, como a entendem os brasileiros, e "simpathy", como disse Bush. Nos Estados Unidos, a palavra "simpathy" é usada para expressar consternação, sendo empregada em casos de doença ou morte de familiares. Os ares internacionais inspiraram o ministro da inflação 20% ao mês. Ainda em Washington, Marcílio comentou a crise do governo como se vivesse na Dinamarca. lembrando que o Brasil corria o risco "de resvalar para a mediocridade moralista". De mediocridade Marcílio entende pouco, já que sua gestão econômica está abaixo dela. Já de moralismo o ministro entende bastante - tanto que não perde oportunidade para elogiar o sinistro Lafaiete Coutinho, presidente do Banco do Brasil.

Como é normal nas grandes tempestades, também existem os que aproveitam o balanço dos vagalhões para tentar uma vaga na cabine de comando na última hora. Numa conversa demorada com o embaixador Marcos Coimbra, o deputado Roberto Jefferson, do PTB do Rio de Janeiro, pregou a demissão de três integrantes do primeiro escalão do governo. Célio Borja, da Justiça, Francisco Gros, presidente do Banco Central, e Luiz Fernando Wellisch, diretor da Receita Federal. ''Temos de tirar o Célio Borja, porque ele é um traidor do governo tão sem vergonha que não tem coragem de pedir demissão. Estamos sendo apunhalados pelas costas", disse o deputado. ''Temos de fazer essas mudanças porque estamos em guerra na Câmara e não podemos ser apunhalados pelas costas.” Jefferson, pelo jeito, deve ser o representante da mediocridade moralista a que se refere Marcílio.

Outros fazem força para ficar em suas tocas. Vinte e quatro horas depois de ser afastado por sentença judicial do cofre de verbas a fundo perdido da Fundação Banco do Brasil, que empregava para comprar consciências na Câmara, Lafaiete Coutinho conseguiu reassumir o cargo através de um mandado de segurança. O velho "Lafa" manteve-se no posto, mas há uma ressalva. Por decisão da Justiça, ficou proibido de assinar um único cheque destinado a liberar verbas para a clientela do governo, nem mesmo para aqueles pedidos em andamento, já aprovados, na boca do caixa para o pagamento. Não é o único percalço. Nesta quarta-feira, o Tribunal de Contas da União irá julgar um pedido para afastar Lafaiete da própria presidência do Banco do Brasil, a segunda maior instituição financeira do país.

SOB TUTELA - Integrante como Lafaiete da confraria de PC Farias no governo, Álvaro Mendonça, presidente da Caixa Econômica Federal, passou por um vexame semelhante sem se abalar. Ele pretendia liberar a toque de caixa uma verba de 500 bilhões de cruzeiros armazenados no FGTS, cujo destino seria presentear empreiteiras capazes de acionar deputados contra o impeachment. Foi vencido por uma articulação que uniu o PT, o PMDB e o PSDB e mobilizou sindicalistas e empresários, impedindo que a reunião do Conselho Curador do FGTS, responsável pela verba, tivesse quorum suficiente para tomar a decisão. Por decisão do juiz Francisco da Cunha, da 6 ª Vara de Brasília, Álvaro Mendonça também tornou-se uma rainha da Inglaterra dos cofres públicos. Pode prometer o que quiser. Mas não pode realizar empréstimos, nem assinar convênios, nem fazer pagamentos, até que seja concluída uma auditoria na empresa.

Sob tutela, como os índios e os doentes mentais, seria demais imaginar que figuras do quilate de Lafa e Álvaro tivessem a dignidade de se afastar do cargo' até que as investigações terminassem e tudo fosse esclarecido. Por ironia, até eles podem dizer que o exemplo vem de cima. Mas seria possível pensar que, com a Justiça em seu encalço, eles seriam capazes de se recolher. Nem isso. No mesmo dia em que se tomava um exótico presidente de banco proibido de assinar cheques, Lafaiete telefonou para o gabinete do deputado Fetter Junior, do PDS gaúcho.

- O senhor poderia reunir a bancada para discutirmos interesses comuns? indagou.

- Tudo bem, presidente, desde que não se coloque a questão do impeachment em discussão - respondeu o deputado. - A bancada já decidiu votar a favor e vai fazê-lo.

- Vocês querem mesmo virar oposição - insistiu Lafa.

- É melhor ser oposição ao governo Collor do que mais tarde ter de fazer oposição ao PT - rebateu o deputado, encerrando a conversa.

REBELIÃO NA MÁQUINA - Lafa, Álvaro, Jefferson e outros integrantes do cangaço planaltino irão se mobilizar até o último minuto, mesmo quando não tenham nada a oferecer, com exceção de miragens, mas há um novo fator contra a compra de votos, o é-dando-que-se-recebe e a impunidade. A máquina do governo encontra-se num estado de virtual rebelião e não obedece à voz de comando de seus chefes sob suspeita. São centenas, talvez milhares de funcionários, em repartições do país inteiro, que vigiam seus superiores, apontam irregularidades à imprensa, fazem denúncias à Justiça e impedem as maracutaias de seguir em frente. A Polícia Federal quase sempre trabalhou bem, mas tem trabalhado ainda melhor na apuração da corrupção no governo. Já reuniu um gordo dossiê sobre Fernando Collor e, na sexta-feira passada, ao indiciar PC Farias, apontou seu envolvimento em nove crimes, que somam meio século meio de prisão. Os funcionários da Receita chegaram a fazer greve para reforçar seus vencimentos, mas nenhum cruzou os braços na captura de notas frias capazes de documentar o pagamento de propinas de empreiteiras.

A caneta de Lafaiete só ficou seca porque funcionários da Fundação Banco do Brasil realizaram um cuidadoso levantamento das irregularidades que vinham ocorrendo, conseguiram o apoio do Sindicato dos Bancários e denunciaram as maracutaias na Justiça. Já acostumado à compra de votos e a fazer chantagem contra empresários, agora Lafaiete se dedica a perseguir funcionários do Banco do Brasil que zelam pelo cumprimento do regulamento da instituição. Na semana passada, seus métodos truculentos chegam a provocar um abaixo-assinado que circulou pelo Congresso, no qual oito deputados o acusam de submeter os subordinados a “atos de terrorismo psicológico".

Na sexta-feira, o Planalto iniciava os preparativos para um pronunciamento de Collor a ser feito pela TV, na noite anterior" à votação. O presidente chegou à votação decisiva para sua sobrevivência sem ao menos o apoio de subalternos à prova de qualquer infidelidade. Na segunda-feira, a secretária Maria Isabel Teixeira, responsável pela conta fantasma de Rosane Collor, prestou depoimento à Polícia Federal. Depois, foi a vez de Dário Cavalcanti, leão-de-chácara que acompanha o presidente desde os tempos de Alagoas. No dia seguinte, foi convocado o mordomo da Dinda, Berto José Mendes. Os depoimentos foram sigilosos, mas sabe-se que nenhum deles inocentou o presidente. Às vésperas da votação do impeachment, Collor não consegue o apoio de uma secretária, de um guarda-costas e de um mordomo para defendê-lo .


FONTE: veja.com

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